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Gigaton: Pearl Jam encara a urgência do mundo com coragem sonora

Capa do álbum Gigaton do Pearl Jam, com uma geleira se derretendo em tons de azul e vermelho.

Lançado em 27 de março de 2020, Gigaton chegou ao mundo em meio a uma pandemia global, e, talvez por isso, soe ainda mais urgente. O décimo primeiro álbum de estúdio do Pearl Jam foi o primeiro em sete anos desde Lightning Bolt (2013), marcando o retorno de uma banda que nunca teve medo de evoluir, mas que agora parece estar correndo contra o tempo.

Com produção assinada por Josh Evans e pelo próprio Pearl Jam, o disco apresenta um som mais experimental e arriscado. Em vez de revisitar fórmulas seguras, o grupo escolheu se renovar, explorando novas texturas e abordagens líricas. Gigaton não é fácil, e nem deveria ser. Afinal, o mundo que ele retrata também não é.

Uma produção ousada e repleta de camadas

A produção de Gigaton é marcada por escolhas ousadas. Josh Evans, que substitui Brendan O’Brien, opta por dar mais espaço à ambientação eletrônica, sons orgânicos e uma dinâmica que desafia o ouvinte. Os instrumentos respiram, mas também provocam. A guitarra de Mike McCready assume um papel quase cinematográfico, enquanto a bateria de Matt Cameron cria atmosferas com suas variações rítmicas.

O álbum é extremamente bem gravado. Cada faixa tem sua própria identidade sonora, mas todas se conectam por um fio condutor emocional: o desejo de mudança. Evans não poliu demais o som, e isso é um acerto. Há rugosidade, texturas ásperas e momentos de explosão. Tudo contribui para a sensação de que algo está prestes a acontecer, ou já está acontecendo.

A voz de Eddie Vedder também ganha destaque com camadas de efeitos discretos, que não tiram sua força, mas ampliam seu alcance emocional. Em alguns momentos, ele soa vulnerável; em outros, absolutamente combativo. Essa alternância é o que dá vida ao álbum, refletindo a complexidade de se viver em tempos conturbados.

Um álbum que denuncia, reflete e propõe

Gigaton é, acima de tudo, um disco político, mas não panfletário. Ele se posiciona, mas sem perder a poesia. Em “Quick Escape”, por exemplo, a banda critica líderes mundiais e a destruição ambiental, mas o faz com um groove irresistível e uma narrativa inteligente. A música descreve uma fuga impossível, numa Terra devastada pelas próprias escolhas humanas.

“Dance of the Clairvoyants”, primeiro single, surpreendeu os fãs por sua pegada dançante e experimental. A faixa mistura sintetizadores, linhas de baixo pulsantes e uma estrutura que foge do tradicional. Ainda assim, o espírito do Pearl Jam está lá: contestador, inquieto, vivo. A canção fala sobre caos, espiritualidade e a busca por sentido.

Em outras faixas, como “Seven O’Clock” e “Alright”, a banda opta por reflexões mais existenciais. Elas abordam o tempo, a memória e a sensação de impotência diante de um mundo à deriva. No entanto, mesmo nesses momentos, há espaço para esperança. O Pearl Jam sugere que, apesar de tudo, a mudança ainda é possível.

Entre o caos e a redenção: dualidades de Gigaton

O álbum trabalha com contrastes, e isso o torna instigante. Se “Who Ever Said” abre o disco com agressividade e crítica direta, “Comes Then Goes” oferece um respiro melancólico e acústico. A alternância entre faixas enérgicas e introspectivas não é casual. Ela espelha a realidade emocional de um mundo em crise, onde cada dia pode trazer raiva ou contemplação.

Aliás, é essa estrutura que transforma Gigaton em uma experiência quase cinematográfica. O disco convida à escuta linear. Cada música parece carregar a anterior e preparar o terreno para a próxima. Assim, o álbum funciona como um diário emocional de tempos incertos, com entradas que oscilam entre a denúncia, a introspecção e o desejo de reconstrução.

Além disso, a sequência das faixas reforça a ideia de jornada. Começamos com a energia crítica de “Who Ever Said”, passamos pela pulsação frenética de “Dance of the Clairvoyants”, mergulhamos nas sombras de “Retrograde” e, por fim, encontramos uma luz em “River Cross”, faixa de encerramento que une sintetizadores de órgão e vocais emocionantes em um clímax espiritual.

Letras que ecoam como manifestos

Ao longo de Gigaton, Eddie Vedder demonstra por que continua sendo um dos letristas mais relevantes do rock moderno. Ele escreve com urgência, mas também com profundidade. Não há simplificações. Cada verso é cuidadosamente pensado, e isso se nota na construção lírica de músicas como “Seven O’Clock”, que mescla referências políticas com imagens poéticas.

A repetição da palavra “now” (“agora”), presente em várias letras, não é coincidência. Trata-se de um chamado à ação — individual e coletiva. O álbum é um grito contra a inércia, contra a apatia diante do colapso ambiental, da desigualdade social, da crise de empatia que atravessa o século XXI.

Vedder não oferece respostas prontas. Em vez disso, aponta direções. Pergunta, provoca, instiga. Suas letras não querem agradar, querem provocar reflexão. E é justamente por isso que elas funcionam tão bem. Falam com quem já está cansado de discursos vazios e procura significado em meio ao caos.

Recepção crítica e resposta dos fãs

Lançado em meio ao isolamento social, Gigaton foi recebido com entusiasmo por boa parte da crítica especializada. Muitos destacaram sua coragem estética e a relevância de suas mensagens. Apesar de dividir opiniões entre fãs mais conservadores, o álbum conquistou respeito por sua ousadia.

As apresentações ao vivo, muitas feitas de forma remota ou adaptadas ao contexto da pandemia — também reforçaram o impacto emocional das canções. “Dance of the Clairvoyants” e “Quick Escape” se tornaram favoritas imediatas nos setlists, enquanto “River Cross” emocionou por sua simplicidade devastadora.

Com o tempo, o álbum ganhou força entre o público. Mesmo aqueles que estranharam a abordagem inicial passaram a reconhecer sua importância. Afinal, Gigaton não foi feito para conforto, foi feito para incomodar. E isso, na melhor tradição do Pearl Jam, é um grande elogio.

Uma nova fase, sem renegar o passado

Embora o som de Gigaton apresente mudanças claras, o álbum não rompe com a identidade da banda. Pelo contrário: ele reafirma o compromisso do Pearl Jam com a verdade, a liberdade criativa e a conexão humana. A cada disco, o grupo busca dizer algo novo, e aqui, essa busca se intensifica.

Não há fórmulas prontas. Cada música surge de um impulso genuíno, seja ele político, espiritual ou puramente artístico. A autenticidade permanece sendo a base de tudo. E é isso que mantém o Pearl Jam relevante, mesmo após décadas de estrada. Eles não apenas resistem ao tempo; transformam o tempo em arte.

Conclusão: Gigaton é mais do que um álbum, é um chamado

Gigaton não é sobre o passado, é sobre o agora. Sobre o que está em jogo. Sobre o que pode ser perdido se não prestarmos atenção. É um álbum urgente, imperfeito e profundamente humano. E é exatamente por isso que ele importa.

Em tempos de colapso climático, polarização política e solidão digital, o Pearl Jam entrega um disco que ousa sentir, ousa reagir. O trovão que se ouve aqui não é só musical, é moral. É o som de uma banda que continua acreditando no poder da arte como ferramenta de transformação.

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